Não vou mais atualizar este blog

Na verdade, já não atualizava quase nada mesmo.

Agora tenho endereço próprio: andreegg.org

Lá terei uma página de História da Música Brasileira e uma categoria de posts sobre o assunto, onde vou passar a publicar os materiais de aula que um dia pretendi publicar por aqui.

 

Os números de 2011

Os duendes de estatísticas do WordPress.com prepararam um relatório para o ano de 2011 deste blog.

Aqui está um resumo:

The concert hall at the Sydney Opera House holds 2,700 people. This blog was viewed about 9.100 times in 2011. If it were a concert at Sydney Opera House, it would take about 3 sold-out performances for that many people to see it.

Clique aqui para ver o relatório completo

A Música Instrumental Brasileira

Estes dias a aula de História da Música Brasileira foi sobre este assunto. Para uma das turmas (Musicoterapia), por que a outra turma (Licenciatura em Música) acabou nem dando tempo de chegar neste assunto.

O que é uma pena, porque poderia ser feito um ano de aula só sobre este assunto, mas acabou ficando expremido em meio a tanto conteúdo.

Eu diria que Música Instrumental Brasileira é uma terceira vertente muito importante das coisas que investigamos na nossa disciplina. As outras duas foram o projeto modernista na música de concerto (ou música erudita) e o projeto da MPB (uma música popular moderna construída nos anos 60 a partir de certas releituras da tradição do samba dos anos 1920/30).

Correndo em paralelo com estes dois grandes projetos que se articularam para representar o Brasil em música, a Música Instrumental Brasileira andou sempre no meio do caminho desses projetos, e acabou se consolidando mais ou menos ao mesmo tempo em que a MPB. Entretanto, a Música Instrumental Brasileira nunca logrou reconhecimento público em mesmo nível, nem teve o mesmo espaço que a canção midiática. Tampouco atrai a atenção dos intelectuais como fez o modernismo musical.

Temos, então, que a Música Instrumental Brasileira segue num certo limbo: fica de certa forma depreciada no conjunto de fatores que se aplicam à Música Popular como um todo, mas ainda mais se comparada à MPB – pois a canção foi sempre o carro-chefe deste mercado.

Pode-se dizer que a Música Instrumental Brasileira surgiu e foi feita sempre onde os músicos profissionais trabalharam: começando pelas confeitarias, hotéis e salas de cinema (onde produziu um Ernesto Nazareth), passando pelo mercado da partitura e da música do teatro de revista (Chiquinha Gonzaga) e chegando aos estúdios das rádios e gravadoras (Pixinguinha e Radamés Gnattali).

Segue abaixo um pequeno roteiro de gravações para se ouvir, que podem traçar um pequeno panorama dos grandes nomes da Música Instrumental Brasileira:

Pixinguinha sera o primeiro da minha lista. Um grande pioneiro da profissionalização, arranjador mais importante da década de 1930 e que depois passou a atuar como instrumentista no conjunto de Benedito Lacerda. Sobre a trajetória profissional de Pixinguinha, este livro é o melhor. E para ouvir o Pixinguinha instrumentista no regional do Benedito Lacerda, você pode comprar esta caixa, ou baixar aqui o disco 2, que é o que concentra a Música Instrumental.

Outro time de profissionais pioneiros são os músicos que trabalharam ao lado de Radamés Gnattali na Rádio Nacional. Além dos músicos da orquestra, que tocava ao vivo nos programas, Radamés formou um conjunto espetacular de base, que incluiu, em diversos momentos, os seguintes músicos: Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto (violão); Chiquinho do Acordeom; Luciano Perrone (bateria); Edu da Gaita; Zé Menezes (guitarra). Além, é claro, do próprio Radamés ao piano.

Uma boa mostra do trabalho desse pessoal também está nas gravações realizada pelo Sexteto Radamés. Se não me engano, fizeram dois discos, um dos quais está aqui, e cuja ficha técnica é esta.

Uma terceira geração de instrumentistas foi a que surgiu nos estúdios e palcos às voltas com os grandes cancionistas que surgiram nos movimentos dos anos 1960. São tantos músicos, que não dá para falar de todos. Então apenas uma pequena seleção:

Baden Powell, aluno de Meira, do célebre regional do Canhoto, que tocou também com Jacob do Bandolim. O Baden ficou célebre a partir dos Afro-sambas, feitos em parceria com Vinícius de Morais. Mas desde cedo ele também gravou muita música instrumental. Como vai ser comum a partir desta época – o músico instrumental tem mais campo de trabalho nos EUA ou Europa do que no Brasil. Baden Powell transferiu-se para Paris, onde viveu muitos anos.

Aqui tem um disco de 1966: Tempo Feliz.

Outro conjunto instrumental pioneiro, surgido por estas épocas foi o Quarteto Novo. Inicialmente Trio Novo, que acompanhou Geraldo Vandré por uma turnê. Depois veio se somar mais um músico ao conjunto que tinha Theo de Barros (violão e contrabaixo), Heraldo do Monte (violão, viola caipira e guitarra elétrica) e Airto Moreira (percussão). Em 1967 o grupo gravou seu célebre disco instrumental, que tem para baixar aqui.

Músicos que acompanham cantores.

Os melhores são contratados pelos grandes nomes da MPB, mas tem ganas de fazer sua música autoral, instrumental.

E dois grandes nomes da MPB se notabilizaram por ter sempre os melhores instrumentistas do país atrás de si no palco: Elis Regina e Milton Nascimento. Basta que se diga que a banda de Elis Regina contou com Cesar Camargo Mariano nos instrumentos de teclado, Hélio Delmiro na Guitarra, e Luizão Maia no contrabaixo.

Hélio Delmiro deve ser colocado entre os principais guitarristas que já pisaram no planeta, o que pode ser comprovado por quem ouvir com atenção seu principal disco: Emotiva, de 1980, que está aqui.

Dos que andaram tocando e gravando com Milton, destaque para Tonhinho Horta, outro monstro da guitarra, reconhecido universalmente.

Na verdade, são trilhões de grupos instrumentais ou artistas solo de altíssimo nível que o Brasil ostenta em atividade. De um modo ou de outro eles derivam de escolas começadas por estes grandes pioneiros e fazem músicas que vem sendo chamadas com maior ou menor propriedade de Choro, de jazz brasileiro, de samba-jazz, entre outros nomes.

Eu considero que o nome Música Instrumental Brasileira reflete melhor a proposta de usar ritmos e idiomas musicais associados à música popular brasileira e criar a partir deles obras autorais, com muito improviso, dialogando com a tradição internacional do jazz e da música instrumental, e criando uma expressão muito brasileira – ao mesmo tempo muito reconhecida internacionalmente.

Livros e resenhas

Sempre muita coisa boa saindo por aí sobre História da Música Brasileira. Aos poucos eu vou atualizar ali a bibliografia comentada, mas enquanto isso não acontece, acompanhe os últimos livros sobre os quais andei escrevendo em outros lugares:

CORRÊA DO LAGO, Manoel.  O Círculo Veloso-Guerra e Darius Milhaud no Brasil.Rio de Janeiro: Reler, 2011. (minha resenha na Gazeta do Povo, 7/08/2011)

MACHADO, Regina.  A voz na canção popular brasileira: Um estudo sobre a vanguarda paulista. Cotia: Ateliê, 2011. (minha resenha pro Amálgama, 1/07/2011)

BESSA, Virgínia.  A escuta singular de Pixinguinha. História e música popular no Brasil dos anos 1920 e 1930. São Paulo: Alameda, 2010. (resenha pro Amálgama, 1/06/2011)

José Maurício Nunes Garcia (1767-1830)

No capítulo sobre “A música barroca”, que escreveu para a História Geral da Civilização Brasileira (Tomo I – a época colonial, organizado por Sérgio Buarque de Holanda), relatando os resultados de suas pesquisas sobre a música no período do ouro em Minas Gerais, Curt Lange concluiu apontando José Maurício como herdeiro da tradição da música do que chamou de “escola de composição da capitania das Minas Gerais”.

À época em que Curt Lange fez suas pesquisas, José Maurício era o nome mais antigo que se conhecia como compositor atuante nas terras que hoje são o Brasil.

Ele já estava ativo no Rio de Janeiro, sua cidade natal, quando ali chegou a corte do Príncipe Regente (futuro rei D. João VI) em 1808. José Maurício era o mestre de capela da Sé do Rio de Janeiro, uma igreja pobre e sem sede definitiva, funcionando em templos emprestados de irmandades. A cidade era uma vila acanhada, mero entreposto administrativo e portuário entre a região do ouro e a metrópole lusitana.

O Príncipe Regente tinha, certamente, entre suas principais preocupações, a questão de como estabelecer uma vida musical “normal” para sua corte. Vinha em seu séquito apenas uma parte de sua formidável Capela Real – que fazia de Lisboa um dos centros musicais mais importantes do Antigo Regime. Sobretudo, faria falta o compositor Marcos Portugal, o preferido da corte, que ficou em Lisboa.

Foi grande a sua surpresa ao encontrar em atividade na cidade o padre mulato. José Maurício tinha tal técnica de composição que impressionou o gosto entendido do Príncipe, sendo nomeado mestre da Capela Real no Rio de Janeiro, na ausência de seu titular de Lisboa. Quando Marcos Portugal decidiu emigrar também, em 1811, ambos passaram a dividir o cargo – tendo morrido os dois no mesmo ano de 1830.

Imaginou-se que José Maurício fosse produto espontâneo, gênio brotado de uma terra sem tradição. Isso mostra o quanto a chegada da corte ao Rio de Janeiro representou uma severa ruptura com tudo de vida autóctone que tinha sido construído em 300 anos de colonização. O Rio de Janeiro tentaria ser uma impossível metrópole européia nos trópicos, de costas para o passado colonial, olhos fixos na Europa.

A descoberta da tradição mineira do século XVIII por Curt Lange, na década de 1940, era a primeira pista da rica vida musical anterior à chegada da corte. José Maurício seria o herdeiro desta tradição, segundo o musicólogo alemão.

Até então, José Maurício foi o primeiro compositor cuja memória não se perdeu no Brasil. Não que sua memória tivesse recebido o tratamento merecido:  somente não tinha sido ignorado de todo. Um seu filho (naquela peoca os padres tinham filhos sem muito escândalo), que se tornou médico, foi um que trabalhou contra o esquecimento. A primeira biografia foi publicada pelo Visconde de Taunay, ainda no século XIX.

Mas o estudo definitivosó sairia pelo trabalho de Cleofe Person de Mattos (catálogo publicado em 1970, biografia publicada em 1997).

A descoberta, no sentido de inclusão de suas obras nos concertos e gravações, foi também coisa difícil. Parece que foi tentada sem sucesso já na virada dos séculos XIX e XX por Alberto Nepomuceno. Mas seria conseguida somente com a Associação de Canto Coral criada na década de 1940 por Cleofe Person de Mattos.

Mais recentemente, são vários pesquisadores, musicólogos e conjuntos espcializados que se dedicam à obra do compositor. O nome dele é considerado sem muita dúvida como o maior compositor do continente, na primeira metade do século XIX. Não vem encontrando destaque na história da música “universal” porque representante de um modo de fazer música que simbolizava o passado aristocrático, já em substituição nos países da revolução industrial por um modo de vida musical burguês, baseado não mais na corte e na música litúrgica, mas no concerto público e nas formas instrumentais e de música absoluta.

É possível perceber uma transição estilística após a chegada da corte. Antes de 1811 (na verdade a maior transição parece que foi mesmo com a chegada de Marcos Portugal), obras vocais, polifonia austera, sentido litúrgico e de devoção pia. Depois de 1811 maior desenvolvimento dos recursos instrumentais, maior influência das sugestões musicais derivadas da ópera, maior virtuosismo e brilhantismo tanto das partes vocais como instrumentais. Maior diversidade de formas musicais também.

Abaixo, vídeo com execução de sua primeira composição, o moteto Tota pulcra es Maria, de 1783 (composto aos 16 anos de idade). Regência de Ricardo Kanji:

Ainda no estilo mais afeito à tradição colonial, Te Christe solum novimus, pelo conjunto Americantiga, regência de Ricardo Bernardes:

Já no novo estilo, algumas obras:

Abertura em Ré, regência de Ricardo Kanji (e explicações também, dadas de dentro da Capela Real)

Lição n° 5, do método piano-forte, com citações da Abertura do Barbeiro de Sevilha de Rossini (execução de Mário Marques Trilha):

Missa de Santa Cecília de 1826, se não me engano, a última composição de José Maurício. No vídeo a seguir, em montagem com imagens do compositor e do Rio de Janeiro da época:

Curt Lange e a descoberta do “barroco mineiro”

Franz Kurt Lange, ou, na versão latinizada, Francisco Curt Lange, nasceu em Eilenburg em 12/12/1903 e faleceu em Montevidéu em 3/5/1997.

Graduou-se em arquitetura na Universidade de Munique em 1927, e doutorou-se em Bonn em 1929, com uma tese sobre a polifonia nos Países Baixos. Estudou regência com Arthur Nikish (1885-1922), um dos maiores nomes da regência, e responsável em grande parte pelas reputações das orquestras de Leipzig (Gewandhaus) e Berlim (Filarmônica) cargos que acumulou até a morte. Além de estudar regência e piano, Curt Lange foi discípulo dos mais eminentes musicólogos alemães: Adolf Sandberger (1864-1943), Ernst Bücken (1884-1949), Erich Hornbostel (1877-1935), Curt Sachs (1881-1959) e do belga Charles van den Borren (1874-1966).

Tudo isso aí informado pelo verbete do The New Grove’s Dictionary.

Como se vê, o cara não era fraco nada. Estava se preparando para ser um eminente entre os eminentes sábios alemães. Mas aceitou convite em 1930 para vir ser diretor do recém-criado Servicio Oficial de Difusión Radio Electrica, SODRE, do governo uruguaio. Em Montevidéu, convitou como regente da orquestra a ser mantida pelo SODRE o fantástico Lamberto Baldi, italiano que estava meio perdido em São Paulo, cidade que não tinha orquestra em 1932.

Quando chegou em Montevidéu, Baldi deve ter comentado com Curt Lange sobre um rapaz muito promissor que tinha sido seu aluno de regência e composição por uns poucos anos em São Paulo: Camargo Guarnieri. A partir de 1934 Curt Lange começou a se corresponder com este jovem compositor e é aí que a história começa pra mim.

Acontece que estou pesquisando justamente o Camargo Guarnieri. E uma das coisas divertidas da pesquisa são as coisas que você descobre nos arquivos justamente quando não está procurando.

Me explico.

O arquivo pessoal de Curt Lange está hoje depositado na Biblioteca Central da UFMG. Veja aqui a página do Acervo Curt Lange. Na verdade, parte do acervo está lá, outra parte parece que foi para o Museu da Música de Mariana.

Uma das coisas que tem lá no acervo, é uma fabulosa correspondência com deus-e-o-mundo. Quando chegou na América do Sul, Lange se empolgou com a possibilidade de se construir aqui as mesmas redes culturais que se formavam entre as cidades da Europa. Se os sul-americanos estivessem dispostos a trabalhar em conjunto, a vida musical passaria por uma efervescência sem precedentes. Trabalhar em prol da cultura musical, para gente como Curt Lange era quase uma religião.

Então Curt Lange começou os contatos com todos os músicos importantes da América. Guardou todas as cartas que recebeu em pastas separadas por compositor. Todas (ou quase todas) as cartas que enviou ele guardou cópias em carbono, encadernou por ano e fez um índice por missivista, numerando todas as cartas. Quem for lá ver o arquivo vai achar que o Curt Lange não fazia outra coisa na vida além de ler e escrever cartas. Mas acredite, ele fazia muito mais.

Fundou uma Sociedade Inter-americana de Musicologia, sediada em Montevidéu. E começou a tentar juntar essa gente toda num movimento que ele batizou de Americanismo Musical. Acho que ninguém se empenhou tanto como deveria, por que o negócio não deu muito resultado. Entre outras coisas, os músicos sul-americanos preferiam ficar brigando uns com os outros feito idiotas, invés de trabalhar em conjunto (graças a Deus já mudou muito isso hoje). Também a cooperação inter-americana foi meio que atropelada pelas iniciativas do Pan-americanismo liderado pelos EUA, o que com os bilhões de dólares que o governo Roosevelt dedicou a diversos projetos, acabou minando um pouco as iniciativas que partiam do sul do continente.

Mas uma das coisas que o Curt Lange fez foi editar o Boletim Latino-Americano de Musicologia. Cada volume seria dedicado a um país. Cada país tratado no volume se encarregaria de montar uma equipe de autoridades para escrever os textos, seriam escolhidas algumas partituras a serem publicadas dos principais compositores. E o governo de cada país cuidaria da impressão.

Tudo correu bem ate chegar a vez do Brasil, país ao qual seria dedicado o volume VI do Boletim.

E aí descubro sem querer umas histórias meio escabrosas na correspondência entre Lange e Guarnieri, quando estou pesquisando sobre outra coisa. Um dia ainda vou escrever um artigo sobre a novela (ou seria thriller) do volume VI do Boletim. Se alguém for lá primeiro consultar a correspondência do período 1943-1946 pode fazer isso antes que eu, que ainda tenho que terminar antes uma tese sobre o Guarnieri. Mas se apresse, que a tese termino em julho próximo.

No meio de todas as trapalhadas possíveis e imagináveis para o Brasil publicar o seu volume, Curt Lange se mudou “temporariamente” para o Rio de Janeiro, conseguindo uma licença de Montevidéu. Era para ficar fora uns 6 meses, encaminhar tudo e voltar. Mas as coisas se enrolaram dum jeito que ele ficou no Brasil até dezembro de 1945, e ainda voltou para Montevidéu sem ver o Boletim impresso. Entre outras coisas, aconteceram dificuldades com suprimentos de papel devido à guerra, mas também uma parte significativa da atrapalhação se deveu à má-vontade explícita de Villa-Lobos que era o encarregado da questão da parte do governo brasileiro.

Fofocas de bastidores à parte, Curt Lange deu um jeito de aproveitar o tempo ocioso à espera dos trâmites burrocráticos (é trocadilho mesmo) do Boletim. Não ficou à toa nos dois anos e meio que esteve preso aqui. Acessorou a montagem da Discoteca Pública de São Paulo e de Belo Horizonte, além de ajudar a fundar várias orquestras no país. Nas horas vagas foi pesquisar a passagem pelo Brasil de um dos maiores músicos do continente no século XIX – o pianista de Nova Orleans Luis Moreau Gottschalk, que morreu no Rio de Janeiro em 1869. Lange pesquisou nos arquivos de periódicos da Biblioteca Nacional, trabalhando com documentação que até hoje os historiadores deconhecem no Brasil. Isso porque o livro nunca foi publicado em português. Saiu uns dez anos depois pela Universidade de Cuyo, em Mendoza, na Argentina, onde Lange exerceu o cargo de diretor do departamento de música na década de 1950. Até hoje nunca vi este livro citado em nenhuma bibliografia, mas está lá no Acervo Curt Lange da UFMG.

Mas a principal coisa que Lange fez durante seu tempo ocioso, foi a descoberta de toda a vida musical do período do ouro em Minas Gerais.

Patrocinado pelo então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, Curt Lange pesquisou os arquivos eclesiásticos das cidades auríferas (Ouro Preto, Diamantina, São João del Rei, Tiradentes e Mariana) tendo em mente uma tese que até então não tinha ocorrido a nenhum brasileiro. A riqueza do ouro, as explêndidas igrejas a literatura dos árcades e a arte de um Aleijadinho – tudo isso só podia apontar para uma riqueza cultural que certamente teria uma expressão musical.

Acontece que as irmandades do século XVIII ainda existiam (e exitem até hoje) e conservavam fabulosos acervos de partituras antigas. Trabalhando como um mouro durante pouco mais de dois anos, só nas horas vagas, Curt Lange consultou (e “pegou emprestado” também) considerável documentação, que o levou a escrever uma história completamente desconhecida da música do ciclo do ouro.

Trabalho pioneiro a qual vem se somando o recente trabalho dos musicólogos brasileiros.

Lange publicou muitos volumes de escritos e partituras, mas um apanhado geral das suas pesquisas foi escrito para um dos volumes da coleção História Geral da Civilização Brasileira, organizada por Sérgio Buarque de Holanda.

As teses de Curt Lange já merceram revisão por parte dos historiadores, especialmente a questão do mulatismo musical (a idéia de que os mulatos teriam uma aptidão natural para a música, o que justificaria a grande qualidade técnica das obras descobertas por Lange). Mas o pioneirismo do seu trabalho continua a conclamar os pesquisadores a arregaçarem as mangas e irem para os arquivos.

Aliás, saia da cadeira, vá trabalhar…

P.S. – agora minha tese já está na Biblioteca Digital, se quiser olhar clique aqui.

Profusão de música na América Portuguesa

Pensar a história da música brasileira, como se propõe fazer este blog (e a disciplina no curso superior de música que lhe deu origem), é pensar a relação entre música e indentidade nacional.

Coisa que não existia antes dos tempos da chamada “independência”.

Falar de “música brasileira” em períodos anteriores seria um erro grave, já cometido, por exemplo, num texto de Gilberto Vasconcelos e Matinas Suzuki na coleção HGCB. Ainda bem que tenho meus fichamentos dos volumes 3 e 4 do tomo III – O Brasil republicano, sob organização de Boris Fausto.  O texto é “A maladragem e a formação da música popular”, capítulo XI, p. 501-523 da edição de 1984 da DIFEL. O capítulo destoa de tudo o mais no livro, não respeita a periodização do volume (1930-64) e usa indicriminadamente o conceito de “MPB” para os séculos iniciais da colonização.

Fecha parênteses.

Os séculos XVI e XVII são períodos bem difíceis de se estudar, pela distância temporal e pela enorme diferença que nos separa da cultura musical daqueles tempos. As fontes são escassas e incompreensíveis para o leitor moderno, necessitando de um trabalho profundo só para torná-las minimamente acessíveis.

Foram os tempos em que o continente americano foi incorporado aos impérios da Península Ibérica: Portugal e Espanha. Seus mui católicos monarcas receberam autorização do Papa (que se julgava diretamente concedida por Deus por meio de seu representante na terra) para colonizar e catolicizar os novos continentes que fossem capazes de atingir com suas formidáveis e invencíveis esquadras.

As características das terras americanas que couberam a Portugal na partilha com o país vizinho fizeram com que nossa região do mundo ficasse relativamente abandonada. Não havia ouro aqui a saquear (como o que os espanhóis encontraram com astecas e incas) nem reinos dispostos a comerciar produtos de alto valor e baixo custo de transporte (como o que os portugueses conseguiram nas costas da África, da Índia e da China).

Por isso, após a passagem de Cabral, demorou-se mais uns 50 anos até chegar o primeiro governador-geral. Com ele chegaram os missionários jesuítas, que mostraram que colonização andava junto com cristianização.

Sabe-se que os jesuítas foram a ordem religiosa que mais levou a sério a tarefa, e a única que dispunha dos meios organizacionais necessários para expandir a fé católica aos cinco continentes. Com os indígenas do Brasil, usaram sempre muita música. Documentos que revelam algo sobre isso estão começando a ser estudados muito recentemente, sendo uma coisa sobre a qual se sabe muito pouco. Alguns textos onde temos pistas para estas informações (com gravações):

Trilha sonora para uma festa antropófaga dos Tupinambás na qual um viajante alemão quase serviu de jantar.

Um canto para a catequese.

Os jesuítas e a música na América Portuguesa.

Os textos com links acima, remetem a duas pesquisas fundamentais. A tese de Marcos Holler sobre os jesuítas e a música e um disco de Ana Maria Kiefer, intitulado Teatro do descobrimento onde a pesquisadora reconstitui de forma bastante imaginativa uma boa parte da música de que se tem notícia para o período dos séculos XVI e primeira metade do XVII. As explicações sobre a pesquisa e os caminhos que trilhou para gravar algumas das músicas foram dadas pela pesquisadora num texto muito interessante: “A flauta de Matuiú: registro, memória e recriação musicaldas festas no Brasil nos séculos XVI e XVII.”  in  JANCSÓ, István; KANTOR, Iris. (orgs.)  Festa. Cultura e sociabilidade na América portuguesa.  vol II.  São Paulo: Imprensa Oficial/HUCITEC/EDUSP/FAPESP, 2001.  p. 891-901.

No mesmo disco, como explica no mesmo texto, Ana Maria Kiefer também especula imaginativamente sobre a música dos judeus no período de presença holandesa no Recife. Quando se sabe que tiveram um momento ímpar de liberdade religiosa – chamado de “restrição moderada” por Franz Leonard Schalkwijk no seu clássico Igreja e estado no Brasil holandês. E faz relação com prováveis permanências no “folclore” rural nordestino. Veja mais sobre isso:

Música dos judeus no Brasil holandês.

Como se vê, as características da ocupação do território do que seria o Brasil são bastante plurais e dinâmicas. Diversos grupos étnicos ameríndios, dos quais os portugueses tiveram relação mais próxima com o grande grupo tupi-guarani. Para sua catequização, os jesuítas desenvolveram até mesmo uma escrita e uma gramática. Com suas tradições musicais, relacionaram-se também as canções e villancicos da Espanha, em versões religiosas. Mas também, uma boa parte daquilo que chamamos de “herança portuguesa” na cultura brasileira foi obra específica dos cristãos-novos, também chamados de cripto-judeus ou “marranos”. Tradições nada européias, ou, melhor dizendo, tradições que os europeus suprimiram violentamente mas que aqui floreceram à margem, além do alcance da repressão inquisitorial.

Como se vê, seria muito ingênuo tentar manter a antiga tese das “três raças” (o índio, o negro e o português). Tem muito mais diversidade aí. E foi a multiplicidade de culturas musicais que se encontraram nos domínios portugueses deste lado do Atlântico que formou o que podemos pensar como particularidades ou diferenças em relação a portugal. A presença muito antiga dessas diferenças com os portugueses foi sempre uma coisa importante para o que depois iria ser pensado como identidade nacional nos tempos de Brasil independente.

História da Música Brasileira?

Isso é o título de uma disciplina que leciono.

Mas já é por si só uma nuvem de controvérsias e questões metodológicas importantes.

Primeiro é preciso pensar: existe “história da música”?

Quase todos os livros que foram escrito com o termo “história da música” no título têm uma concepção meio positivista, e uma noção que não é compartilhada por este autor. Imagina-se que “História” é uma coleção de fatos. Que aconteceram. E que precisam ser descobertos. E sobre os quais só pode haver uma versão possível – a verdadeira. Imagina-se que música é uma arte, com regras próprias, científicamente comprováveis e universalmente aceitas.

Destas premissas, deriva a concepção de uma disciplina que se faz pelo arrolamento de compositores considerados importantes (os critérios de escolha destes compositores nunca são muito claros, pois parte-se da premissa que a lista é óbvia e imutável), dos quais se estabelece catálogo, narra-se a biografia (de modo o mais factual possível) e comentam-se as principais obras (novamente, não faça perguntas incômodas sobre como são escolhidas as obras principais).

Esta concepção de História da Música derivou da atividade de crítica musical surgida na Europa em fins do século XVIII. Concertos públicos começam a surgir, do mesmo modo que o chamado “espaço público” (na forma como o estudou Habermas) tem apoio na democracia liberal e em sua imprensa. Os jornais diários passam a incluir a figura do crítico musical, comentarista de concertos. Especialmente na Alemanha, Inglaterra e França, a música instrumental e sinfônica ganha status de cultura que precisa ser fruída por cidadãos educados. O trabalho da crítica musical passa a ser o de orientar as escutas, separar o bom compositor do charlatão, oferecer um serviço especializado aos leigos. O trabalho vai sendo complementado por biografias de compositores, aos quais se somam os primeiros compêndios de História da Música. Isso complementa o mercado editorial de partituras, e o mundo dos negócios de concerto.

Mas toda a renovação metodológica que ocorreu com a História como disciplina no século XX, levou a um questionamento destas premissas. Da mesma forma como a chamada Nova História passou a se preocupar mais com o homem comum e a vida cotidiana, e menos com os chefes políticos e militares, logo começou-se a pensar que não se podia fazer uma “história da música” centrada em compositores e obras. Precisa-se falar do público, dos editores, das práticas de execução, das técnicas composicionais, dos debates estéticos. Mas tudo isso é assunto que já ganhou consideráveis estudos no campo chamado “musicologia”.

Era preciso ir um pouco mais além.

Questiona-se então se é possível falar em História da Música. Como assim? Como se a música fosse uma coisa separável de outras. Como se o que o sujeito ouve no concerto ou no aparelho eletrônico seja uma experiência completamente separada de outros aspectos de sua vida? Como se uma obra composta fosse sempre a mesma, nunca fosse apropriada por editores, executantes, gravadoras, ouvintes em diferentes lugares e épocas? Como se os compositores formassem um panteão de seres que viveram acima e além de seu tempo, escrevendo imortais cartas à posteridade?

De modo que seria mais preciso falar em história e música. Abstrações teóricas, complementares em vários aspectos. Primeiro por que cada vez mais os historiadores descobrem que músicas são ótimas fontes para se entender uma época. Além de documentos escritos e vestígios materiais diversos. Segundo porque falar de música em épocas passadas é uma tarefa que exige cada vez mais o preparo metodológico considerado do métier do historiador: desconfiar das fontes e de sua intenção de monumentalização, ler as entrelinhas, propor uma abordagem crítica. Descobrir os mecanismos de consagração de compositores e obras e estabelecimento de uma memória. Compreender os mecanismos de escuta. As relações políticas e econômicas envolvidas na produção cultural.

Já é complicação considerável. E é de se imaginar que existe muito trabalho a ser feito neste sentido, sendo uma disciplina com campo de estudos ainda praticamente virgem.

E o que dizer do conceito “música brasileira”?

Mais uma série de problemas terórico-metodológicos.

Como é que uma música pode ser brasileira, ou norte-americana, ou chinesa? Existe documento de cidadania para produtos culturais? É claro que não.

Entra-se então na melindrosa questão da identidade nacional, uma mistura de questões que envolvem idéias racistas, radicalismo político de direita, xenofobia, e outras questões muito perigosas. De modo geral, estudar “música brasileira” pressupõe analisar os mecanismos ideológicos postos em operação para validar um conceito tão impossível. Que elementos podem fazer pessoas tão diferentes se imaginarem como parte de um mesmo grupo (a nação) só por que escutam as mesmas músicas, ou músicas do mesmo estilo?

Tudo isso nos remete aos inúmeros usos políticos que se pode fazer e que se fez da música como síbolo de identidade. Que no Brasil tiveram duas grandes vertentes interpretativas.

Uma delas veio do modernismo, e serve como pano de fundo para quase tudo que se escreveu sobre música brasileira quando o conceito significava uma música escrita na partitura e tocada em concertos. Se consolidou assim toda uma tradição historiográfica que passa por Renato Almeida, Mário de Andrade, Luiz Heitor Correa de Azevedo, Andrade Muricy, José Maria Neves ou Vasco Mariz. Esta corrente imagina que “música brasileira” significa uma música escrita na partitura, para o concerto, conforme os cânones da tradição oitocentista européia (afinal isso é a única coisa que se pode se chamar de música de verdade, não é mesmo?) – temperada com sabores brasileiros pelo uso sistemático e estudado de material folclórico (melodias, ritmos, efeitos instrumentais). Mais ou menos conforme o programa proposto por Mário de Andrade em seu Ensaio sobre a música brasileira, de 1928.

Outra se aplica à noção de “música popular brasileira”, derivada da tradição modernista, só que invertendo um pouco as chaves valorativas. Consolidou-se à partir da Revista de Música Popular, publicada entre 1954-56, e concebeu o samba dos anos 1920-30 como elemento fundador, como tradição, como origem a ser preservada e reelaborada. Com este conceito de tradição trabalharam os movimentos musicais dos anos 1960, que acabaram gerando a sigla MPB.

Que não é entendida como qualquer música popular feita no Brasil. Mas especialmente aquela música popular identificada com a tradição do samba carioca.

Feitas essas ressalvas, estamos convidados a mergulharmos todos neste passado constantemente presente, pelo qual reelaboramos continuamente nossa cultura. Num país onde a música é ainda mais significativa por causa de uma diminuta importância da cultura escrita.